No direito quem erra o meio, erra o fim. Consequentemente, quem dá os meios, deve também dar os fins. Não faz sentido que se conceda um direito sem dar-lhe a efetividade para sua concretização. O fim das coisas é se realizarem.
A história já é conhecida por todos nós: no intuito de se facilitar a fiscalização do imposto sobre circulação de mercadorias — ICMS criou-se novo regime jurídico instituído pelo §7º do artigo 150 da Constituição da República.
Lá foram feitas duas afirmações a esta possibilidade: 1) a primeira pessoa que realizar operações com mercadorias deverá pagar o imposto (ICMS) pelas operações de outras segundas pessoas, sendo que o valor da venda será presumido pelo Estado; 2) a obrigação do Estado em restituir (pagar de volta) caso a segunda pessoa não realize a operação presumida.
Há, pois, três mandamentos. A norma jurídico-tributária que determina o pagamento do tributo pelo contribuinte (primeira e segundas pessoas que venderem a mercadoria). A norma administrativo-fiscal que obriga a primeira pessoa (substituto) a pagar pela segunda pessoa (substituída), presumindo-se (iuris tantum) que a segunda pessoa irá vender mercadoria [1]. A norma administrativa que obriga o Estado a restituir os valores se não ocorrer a presunção de venda pelo substituído.
Esta terceira norma — que não é tributária, mas sim administrativa — foi objeto de longas discussões pretorianas. Teve seu suposto fim com o julgamento do RE nº 593.849 (tema nº 201), no qual se definiu que "é devida a restituição da diferença do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços — ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida".
Esta interpretação do §7º do artigo 150 da Constituição criou um problema financeiro ao Estados: a restituição imediata e preferencial criaria grande problema de entrada de valores (decorrente de tributo e de obrigação administrativa) para posterior restituição de parte de valores. O caixa do Estados-membros é apertado, o valor que entra é o valor que está afetado à utilização pública. Movimentar o caixa em prol do contribuinte seria, pois, um martírio.
Daí as mais criativas e úteis soluções: a) permitir que o contribuinte substituído emita nota fiscal de restituição ao contribuinte substituto, que devolverá o valor e poderá tomar um crédito de ICMS; b) permitir apenas que o contribuinte substituído tome créditos de ICMS; e c) restituir em dinheiro num prazo razoável o valor arcado a maior.
Serão todas estas soluções constitucionais? Estarão abarcadas pela interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal do §7º do artigo 150 da CR?
Algo somente é constitucional ou não quando realiza corretamente o regime jurídico determinado pela Constituição. Simples: se a Constituição demanda "A", então "A" deve se realizar. Se "A" não ocorre, então sua não ocorrência ou ocorrência de outra forma é inconstitucional.
Na restituição do ICMS arcado a maior no regime da substituição tributária a interpretação vinculante é a de que o contribuinte substituído deverá ser restituído. Tudo o que versar sobre restituição esta abarcado por este mandamento (hipótese: ICMS-ST arcado a maior; consequência: restituição).
O que significa restituir? Significa devolver algo que foi tirado. Se o contribuinte puder aproveitar créditos de ICMS, ótimo, a solução é constitucional. Se não puder, que pena, é inconstitucional, pois contraria a interpretação vinculante do §7º do artigo 150 da CR.
É aqui que entra o caso do comércio varejista (contribuinte substituído) que possui a maior parte de todos os seus produtos recolhidos na forma do "ICMS-ST". Não há débitos de ICMS para serem compensados com créditos — é esta a sistemática adotada por alguns Estados como Mato Grosso do Sul [2] e Rio Grande do Sul.
É constitucional a solução de conceder créditos para quem sequer tem débitos? Evidente que não, pois não há a concretização da restituição do ICMS [3] conforme a interpretação dada ao §7º do artigo 150 da CR. Esta solução inviabiliza os meios onde há o direito.
Fato é que nem todas as criativas soluções ao fluxo de caixa do Estado-membro são plenamente constitucionais, face ao regime jurídico de restituição existente e, claro, a lógica do mundo — quem dá os fins, dá os meios. Ou, no ensinamento de Rui Barbosa, a Constituição não dá com a mão direita para tirar com a esquerda.
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[1] "A substituição tributária é um fenômeno jurídico que decorre da coexistência de duas normas de conduta de natureza diversa e inconfundível: uma — a norma jurídica tributária, que determina, em seu consequente, a obrigação de, a título de tributo, o contribuinte entregar certo valor em dinheiro ao Estado-Fiscal (representado pelo substituto tributário, mero agente arrecadador) dele retire certa importância; outra — a norma jurídica administrativo-fiscal, que determina, em seu consequente, a obrigação de o substituto tributário (que atua como órgão meramente arrecadador) entregar (repassar) ao Estado o dinheiro recebido ou retido do contribuinte (Queiroz, Luís Cesar de Souza. Curso de especialização em direito tributário: estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho, Rio de Janeiro, Forense, 2005, p. 238)".
[2] Decreto estadual nº 15.484/20.
[3] Este foi o entendimento da 21ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: "O artigo 25-C, II, do RICMS, na redação trazida com o Decreto Estadual nº 54.308/18, ao prever a transferência, sem limitação temporal (período ou períodos seguintes), de créditos de ICMS, derivados do excesso do preço estimado e aquele efetivamente praticado, na substituição tributária para a frente, quando evidenciada a impossibilidade de compensação, por inexistirem débitos de ICMS, implica desnervar direito à restituição, levando a que se assegure a efetiva restituição, seja em pecúnia, seja por transferência de crédito, sob pena de se transformar em quimera" (TJRS, agravo de instrumento nº 0027844-51.2019.8.21.7000, relator desembargador Marcelo Bandeira Pereira, 21ª Câmara Cível, julgado em 27.3.19).